sábado, 30 de dezembro de 2006

CAPITULO IX

Suponho que, para se evadir, aproveitou uma migração de aves selvagens. Na manha da partida, pôs em ordem todo o planeta. Vasculhou cuidadosamente os vulcões em actividade. Tinha dois vulcões em actividade. Davam muito jeito para aquecer, de manha, o pequeno-almoço. Tinha também um vulcão extinto. Mas, pensava ele: “Nunca se sabe..” Vasculhou também o vulcão extinto. Se estiverem bem varridos, os vulcões ardem de mansinho, moderadamente, sem erupções. As erupções vulcânicas são como os fogos das chaminés. É evidente que, na nossa Terra, somos pequenos de mais para manter os vulcões limpos de fuligem. Por isso nos causam tantos aborrecimentos.
O principezinho arrancou também, com um pouco de melancolia, os últimos rebentos de embondeiros. Pensava nunca mais voltar. Por isso, todas essas tarefas habituais lhe pareceram, nessa manha, extremamente agradáveis. Ao regar a flor pela ultima vez e ao preparar-se para a cobrir com a redoma, reparou que tinha vontade de chorar.
- Adeus – disse à flor.
Ela não respondeu.
- Adeus – repetiu.
A flor tossiu. Mas não por causa da constipação.
- Fui tola – disse, por fim. – Perdoa-me. Trata de ser feliz.
Surpreendeu-o a ausência de censuras. Deteve-se, muito perturbado, com a redoma na mão. Não compreendia aquela afabilidade calma.
- Sabes, eu amo-te – disse a flor. – Nunca to disse, a culpa é minha. Não faz mal. Mas foste tão tolo como eu. Trata de ser feliz… Deixa ai a redoma. Já não a quero.
- Mas o vento…
- Terei de suportar duas ou três lagartas se quiser saber como são as borboletas. Dizem que são muito lindas! Se não, quem vira visitar-me? Tu, tu estarás longe. Quanto aos bichos grandes, não tenho medo nenhum. Tenho as minhas garras.
E mostrou, ingenuamente, os quatro espinhos. Depois prosseguiu:
- Não estejas com delongas, é irritante. Decidiste partir. Vai-te embora.
Porque não queria que ela a viesse chorar. Era uma flor muitíssimo orgulhosa…

Amigo

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer. Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim. Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive...